A partir da década de 1970 a problemática urbanística explodiu no país, tendo em vista a concentração populacional nas grandes cidades e a explosão do déficit de moradia, cenário que se mostrou um terreno fértil para a proliferação de invasões e de loteamentos clandestinos. Obviamente, isso demandava uma atuação diferenciada por parte do Poder Público, seja em termos administrativos ou legislativos, uma vez que o cenário só propendia a piorar com o passar do tempo – haja vista que o adensamento urbano era e é uma tendência mundial.


Foi nesse contexto que surgiu a Lei Lehmann (Lei 6.766/79), cujo nome se deu em razão do seu proponente, o advogado e senador Otto Lehmann (ARENA/SP), a qual tinha como principal objetivo dispor sobre a organização do uso e do ordenamento do solo urbano. Demais, o Decreto-lei 58/37, que tratava do loteamento e da venda de terrenos para pagamento em prestações, tinha um enfoque muito mais contratual e registral, atendo-se pouco à discussão urbanística.


O objetivo principal foi estabelecer as diretrizes para o parcelamento do solo urbano, o qual poderá se dar por meio de loteamento ou de desmembramento, sendo estes uma espécie da qual aquele é o gênero. Daí Leon Delácio de Oliveira e Silva, Leonardo Teles de Oliveira e Eduardo Teles de Oliveira defenderem que essa norma “estabelece normas gerais para o parcelamento do solo urbano, com vistas a regulamentar o processo de urbanização de uma gleba (área de terreno que ainda não foi dividida/parcelada), mediante sua divisão e redivisão em parcelas destinadas ao exercício das funções urbanísticas”.


Nesse sentido, a própria lei conceituou o loteamento como “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes” e o parcelamento como “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes” (§§ 1º e 2º do art. 2º).


Em síntese, a norma versa sobre os requisitos urbanísticos para o loteamento, sobre o projeto de loteamento, sobre o projeto de desmembramento, sobre a aprovação do projeto de loteamento e desmembramento, sobre o registro do loteamento e desmembramento, sobre os contratos e sobre os crimes relacionados ao parcelamento irregular, afora as disposições preliminares e finais.


A ideia geral foi que o parcelamento é sempre uma atividade pública, mesmo quando executada pela iniciativa privada, daí a exigência da chancela do Poder Público e o estabelecimento de requisitos materiais e formais em lei. A Lei de Parcelamento do Solo abraçou a noção de questão urbanística como de ordem pública e interesse social, o que exige o controle direto do Poder Público, concepção essa que depois foi adotada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).


O Ministério Público foi imbuído da obrigação de cobrar a legalidade do parcelamento do solo urbano, haja vista o que determinaram os arts. 19, § 2º, 23, § 2º e 38, §§ 2º e 3º, sem mencionar os tipos penais previstos nos arts. 50, 51 e 52. Isso antecipou a compreensão do Parquet como órgão responsável pela defesa dos interesses difusos e coletivos, algo que viria a se consolidar posteriormente com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81, art. 14, § 1º) e da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85).


Essa norma também é precursora do Direito Ambiental brasileiro, uma vez que já demonstrava preocupação com o assunto mesmo quando a problemática ambiental ainda não era levada em consideração no país. Cabe destacar a proibição da edificação em áreas consideradas ecologicamente sensíveis, bem como o estabelecimento de uma margem mínima de proteção aos recursos hídricos e a proteção do patrimônio cultural:


Art. 3º. Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas ou de expansão urbana, assim definidas por lei municipal.


Parágrafo único - Não será permitido o parcelamento do solo:


I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas;


Il - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados;


III - em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes;


IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;


V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.


Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:


(...)


III - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;


(...)


Art. 13. Caberão aos Estados o exame e a anuência prévia para a aprovação, pelos Municípios, de loteamento e desmembramento nas seguintes condições:


I - quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal;


(...)


Isso significa que a Lei Lehmann antecipou a ideia de indissociabilidade do meio ambiente urbano com o meio ambiente natural e cultural, entendimento que depois se faria predominante na doutrina, na jurisprudência e na legislação. Os crimes urbanísticos da lei, que antecederam os tipos penais da Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais (Lei 9.605/98), formam juntamente com estes uma espécie de microssistema penal ambiental.


Mesmo sem o Município fazer parte do Pacto Federativo à época, a norma procurou respeitar a autonomia administrativa do ente local, cuja competência administrativa e legislativa a respeito do assunto foi assegurada (arts. 3º, caput, 10, 11, parágrafo único, 12, 16, 28 e 53). A tipificação de infrações administrativas ficou a cargo de cada Municipalidade, que deveria estabelecer modalidades e valores de sanções administrativas compatíveis com a sua realidade.


Juntamente com o Estatuto da Cidade, a Lei da Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) e a Lei da Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017), essa ainda é uma das normas mais importantes na área de Direito Urbanístico, tendo um caráter de aplicabilidade imediata maior do que o das demais normas citadas. É claro que houve alterações e atualizações legislativas ao longo do tempo, a exemplo da criação do loteamento de acesso controlado e do condomínio de lotes, criados pela Lei da Regularização Fundiária.


Entretanto, é preciso reconhecer que em 40 anos a sociedade se transformou de maneira significativa, e que os problemas urbanísticos devem ser enfrentados de maneira mais eficaz, holística e objetiva. É nesse contexto que agora desponta o debate sobre o Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial Urbana (PL 3.057/2000), que tramita na Câmara dos Deputados sob o rito ordinário e que deverá, quando devidamente aprovado e sancionado, contribuir para o cumprimento das funções sociais das cidades brasileiras.


 

Fonte: ConJur.